A dOCUMENTA(13)
“A dança foi frenética, animada, irritante, giratória,
torta e demorava um tempão”. (1)
Em junho de 2012 tive a oportunidade de visitar a dOCUMENTA(13),
em Kassel. A dOCUMENTA(13) é considerada da maior importância porque acontece
só a cada cinco anos e visa ser uma mostra de Arte Contemporânea internacional.
Ela acontece por 100 dias na cidade de Kassel, Alemanha, nesta vez convidando quase
200 artistas do mundo inteiro, com 35 lugares de exposição só dentro da cidade
de Kassel, acontecendo diariamente até 20 performances e tendo chegado a um
teto de mais de 800 000 visitantes, só para citar alguns números. Diferentemente
das bienais, ela excede as fronteiras nacionais e se encontra com artistas do
mundo inteiro para apresentar a diversidade de formas da expressão artística. Especialmente
nesta edição, a dOCUMENTA(13) considera as diferentes temporalidades em que vivem
os diversos povos da terra, dando espaço para muitos grupos e minorias. Ela
representa a cultura ocidental com as suas pesquisas e sua sofisticação de
suporte, mas também realça uma fusão entre técnica, tecnologia, conhecimento e
aprendizagem com as culturas não ocidentais. Ela tem um espirito amplamente
integrativo da arte com as outras disciplinas como as ciências (arqueologia,
astronomia, zoologia, ecologia, economia, química, física, medicina), música e
literatura.
As ciências têm dupla função nesta mostra. Como criadores
de modelos de conhecimento, que dependem das imagens e dos efeitos estéticos,
necessitando de elementos mensuráveis, e como criadores de um pensamento, que
precisa sempre se auto contrariar.
A mostra se aventura a juntar estas esferas separadas: a
irracionalidade com a racionalidade, os espíritos com o espírito, a poesia com
a politica.
Abrangendo as linguagens clássicas como a escultura, a
instalação, a performance, a pesquisa, a pintura, a fotografia, o filme, bem
como linguagens novas como textos e trabalhos baseados no áudio, assim como
outros experimentos no campo da estética, arte, política, literatura, ciência e
ecologia. A hibridação causada pela convergência dos meios como cinema, vídeo e
instalação, cinema expandido, vídeo instalações que se somam às ações
performáticas, resulta em ambientes especiais, de maior impacto ao espectador. Nisto
se inclui recentes estudos sobre a ‘gameficação’ da arte, dos processos
generativos e de mídias locativas. Lá também estão representadas pesquisas sobre
o futuro da net ou da web art, cuja
incidência pleiteia dos meios computacionais a criação artística.
O Tema
Esta 13ª edição da dOCUMENTA
tem como tema principal ”colapso e
recuperação”.
Mesmo com a Curadora Carolyn Cristov-Bakargiev dizendo”..eu
não tenho conceito..”,(2), se mostram
conceitos centrais como a ecologia e a sustentabilidade. Associa a Arte
à Natureza, sugerindo que Arte é Natureza. Os contextos e poéticas apelam a
dimensões mais humanísticas. Carolyn Cristov-Bakargiev se refere muito a Beuys,
um nome consagrado em outras edições da dOCUMENTA(13), e dá um passo adiante
derrubando barreiras intelectuais e abrindo novas perspectivas mostrando a extensão
das possibilidades do mundo artístico contemporâneo.
Para a curadora, a dOCUMENTA(13)é uma forma de pesquisa e
dedicação a materiais. Sua disposição intuitiva corresponde à dos artistas com os
quais ela colabora. Desta forma a documenta virou um palco no qual ideias sobre
a vida estão sendo questionadas.
“A dOCUMENTA(13)dedica-se
à pesquisa artística e às formas da imaginação, engajamento, matéria, coisas, incorporações
para descobrir o vivo ativo; isso acontece em conexão com a teoria, sem se subordinar
a ela. São ares onde o político está inseparável de um pacto sensual energético
e voltado ao mundo entre a pesquisa atual nos variados campos científicos e
artísticos e outras descobertas, tanto históricas como contemporâneas. Esta
edição está motivada por uma visão holística, não logocêntrica, na qual a
crença no crescimento econômico está sendo minada. Esta visão compartilha e respeita
as formas e as práticas do saber de todos os produtores, vivos e não vivos, do
mundo, incluindo o homem.” (Carolyn
Christov-Bakargiev, curadora da dOCUMENTA(13).(3)
Especialmente este último ponto gerou muita polemica, com
a valorização dos animais como seres, simbolicamente o cão, para o qual havia
obras como o playground canino, ou o habitat de dois cães de Pierre Huyghe. A
intenção disso era ampliar o olhar das pessoas, criar novas perspectivas para
todas as criaturas vivas do mundo, dando a chance de adotar o ponto de vista
dos não seres humanos, ‘expandindo’ mais uma vez ‘o mundo da arte’.
Os
lugares
Também
aqui o entendimento de “localidade” de uma mostra, o significado de local, que
faz todo sentido nestes tempos da globalização, está sendo expandido. A dOCUMENTA(13)
vira um grande dispositivo. Ao lado dos
lugares principais tradicionais da documenta em Kassel, o Fridricianeum, o hall
da documenta, a galeria nova – os espaços museais e os “White cubes” – a
documenta13 também acontece numa variedade de outros espaços que representam
diferentes áreas e realidades físicas, psicológicas, históricas e culturais.
Ela acontece em espaços que estão dedicados à historia da natureza e da
técnica, como o Ottoneum e a Orangerie.
Neste contexto, fora dos salões está o parque “Karlsaue
“, de grande importância. Para a dOCUMENTA(13), foram colocadas mais de 30
pequenas casas de madeira com trabalhos artísticos, com um acesso não tão fácil
como o da sala de um museu com as obras lado a lado. No parque o espectador tem que “conquistar”,
“achar” a arte. Ele tem que desacelerar e “estar no aqui e agora”, ligado ao seu
redor, porque a arte pode estar escondida em qualquer lugar... No parque parece
que se unem a natureza, a arte e a realidade da vida.
(3) The Guidebook, Catalog 3/3 da dOCUMENTA(13), Hatje
Cantz Editora Alemanha 2012
Um contraponto ao parque foi composto pelos espaços industriais
atrás da antiga estação de trem, que hoje só esta sendo usada para o transporte
regional. Um espaço diatópico, conectado com o mundo das fábricas que
produziram, no século 20, tanques de guerra para o regime nacional-socialista.
A mostra também acontece num grande número de espaços “civis” de variadas
localizações, longe dos lugares principais - Espaços que ainda estão sendo
usado e também lugares que caíram no esquecimento com o tempo e que, por fim,
acabaram sendo “retirados”.
Neste sentido, a dOCUMENTA(13) coloca em prática uma
mudança “espacial” ou, mais concretamente, um “local referente”, através do
realce do significado do local físico, mas que ao mesmo tempo mira o
deslocamento e a criação de outras perspectivas parciais – a exploração de
micro-histórias em escalas variáveis, que conectam a história e a realidade
local com o mundo.
Todavia, a proposta é ainda bem mais ampla. A dOCUMENTA(13)
se concretizou em quatro lugares do
mundo paralelamente, quase como em homenagem ao tempo da globalização. Ela acontece
em Kassel, Alemanha; Kabul, Afganistão; Kairo, Egito e Banff, Canadá.
Em especial, a conexão entre Kassel e Kabul parece uma ideia
cheia de sentido. Kassel foi, na segunda guerra mundial, centro da indústria de
guerra, sendo por isso mesmo, lugar de terrível destruição. Mas depois, também
impulsionada pela criação da documenta, tornou-se um lugar símbolo da força da
arte contemporânea. Kabul é um lugar de grande cultura e história e,
similarmente a Kassel, meio século depois foi amplamente destruída. Diferentemente
de Kassel, Kabul provavelmente não vai voltar tão cedo a uma normalidade. E
especialmente aí é importante que a arte coloque sinais, a possível cura
através da arte.
Uma obra que ilustra bem este tema do “site”, e de forma mais
prática, é o trabalho de Theaster Gates(*1973 em Chicago).
Em Chicago ele fundou a “Rebuild Foundation”, renovando
casas e aproveitando material de demolição para fazer esculturas e móveis.
Para a dOCUMENTA(13), ele ocupa uma casa abandonada desde
1970, em Kassel, a casa dos Hugenottes. Com a ajuda de desempregados de
Chicago, que participam em um programa profissionalizante, ele recupera esta
casa com material de casas em demolição de Chicago e de Kassel. Conectando
assim dois lugares de continentes diferentes, recuperando uma coisa destruída
com a inclusão de outra coisa destruída. A casa reconstruída e revitalizada
vira laboratório para objetos, performances, discussões, banquetes e
instalações, querendo deslocar o limite do trabalho e da produção criando
espaço para o outro. Assim, com este projeto, se propõe a conseguir uma cura metamórfica
desta casa.
A obra vira uma “escultura social”. Ele tira tetos e abre
espaços como Gordon Matta Clark. A casa vira obra de arte, lugar de encontro,
de acontecimentos. Ela volta a viver.
Na casa se mistura a vida normal com a arte, a fronteira
entre o privado e o publico se desmancha. A casa vira palco para a invenção de
uma nova sociedade.
A
Curadora
Em entrevistas, a curadora Carolyn Cristov- Bakargiev
recua a importância dela mesma como curadora dizendo “...só regulo o trânsito..”como fala em uma
entrevista com a televisão alemã (4) e dando muita liberdade ao artista na realização
de sua obra para a documenta, se inserindo em uma nova tendência do mundo da arte.
O informativo oficial da dOCUMENTA(13) disse sobre ela:
(4) Entrevista para: ttt-extra, do canal de televisão
Alemã ARD do dia 10 de junho de 2012
O interesse da escritora e curadora Carolyn Cristov-Bakargiev
é a arte contemporânea e sua relação com a vanguarda histórica, especialmente a
arte povera e seu diálogo com a arte no mundo inteiro. Cristov-Bakargiev
conecta ambição política com a reclamação, ao garantir novas possibilidades de
desdobramento da expressão pessoal e abrir o espaço poético. Ela representa um
ceticismo fundamental contra ideias e dogmas pré-fabricados. De 1999 á 2001 ela
foi curadora sênior no P.S.1 Contemporary Art Center, uma filial do MoMA, em Nova
York. De 2002 á 2008 ela foi curadora chefe no Castello diRivoli em Turin, o qual
ela, em 2009, também dirigiu como diretora. Além disso, trabalhou em 2005 como
co-curadora na primeira trienal de Turin e, no ano de 2008, como dirigente
artística na 16° bienal de Sydney, “revolution- forms that turn”.
Na dOCUMENTA(13), Carolyn Cristov-Bakargiev está sendo
assistida por um grupo de agentes e conselheiros provenientes de variados
campos profissionais, como a diretora de departamento Chus Martinez, assim como
por Donna Haraway , Pierre Huyghe, Michael Taussig, Anton Zeilinger, Raimundas Malasauskas,
Marta Kuzma, Andrea Viliani, Kitty Scott, Ayreen Anastas e Rene Gabri, entre
outros.
A
história
A primeira documenta, realizada em 1955, fui idealizada
por Arnold Bode com a ideia de se engajar para a aceitação da arte moderna e
para mostrar a capacidade no campo da arte como contraponto ao socialismo
(Kassel estava situada a poucos quilômetros de distância da antiga fronteira
com a Alemanha socialista). Assunto principal foi também a reparação cultural
depois do regime nacional-socialista. Os artistas que foram difamados como
“degenerados” pelo regime nacional-socialista foram reabilitados, valores
ajustados e recuperados.
A cidade de Kassel foi alvo de muita destruição na 2ª
Guerra Mundial em função da existência de fábricas de armas e tanques. Todavia,
os edifícios grandes representativos ficaram. Na reconstrução da Alemanha,
Kassel virou um exemplo símbolo de uma cidade moderna, planejada. Tornou-se assim
uma moldura e uma infraestrutura perfeita para um evento ambicioso como esse.
O ”BRAIN”
É um espaço, no coração do Fridricaneum, que funciona
como um mini -quebra cabeça de uma exposição. Aqui todas as linhas de
pensamento da dOCUMENTA(13)se amarram.
Um espaço associativo, no lugar de um conceito. Ele contém “coisas”
desde as “princesas bactrianas”, estátuas femininas provenientes da cultura do
terceiro milênio antes de Cristo da Ásia central, objetos tão pequenos que talvez
por isso sobreviveram até hoje e não foram destruídos, ao contrário dos Budas
de Bamiyan; uma coleção de objetos do banheiro do apartamento de Hitler; uma
seleção de vários objetos de Man Ray: “objetos a destruir/ objetos indestrutíveis”;
o primeiro computador de Konrad Zuse; as fotografias de um projeto de capturar
neblina no deserto de Atacama, de HoracioLarrain Barros; e muito mais.
A “coisa” é um ponto central da dOCUMENTA(13): a
presença, a experiência de formas que se negam à interpretação. Exatamente por
isso ela estimula a imaginação, a discussão. “Coisa”, pelo menos na raiz
linguística da língua alemã e inglês, tem também o significado de reunião, como
explica o filósofo Heidegger.
A coisa, o objeto como depósito de informação, como
gerenciador de comunicação e como antídoto a um capitalismo globalizado,
onipresente e sem lugar fixo, que opera com valores fictícios.
A relação do ser humano com as “coisas” é muito complexa.
De um lado, o ser humano faz do seu corpo uma coisa, produto de design através
da cirurgia plástica, e os cientistas vêm
nele um monte de células, um objeto sem alma.
Por outro lado, as coisas ganham alma, computadores
falam, celulares querem carinho. Tudo isso está sendo realçado aqui na dOCUMENTA(13);
parece que tudo tem alma agora. O pensamento lógico, um pensamento em causa e
efeito, perde significância. O intuitivo vira conceito, como é explicitamente
declarado pela curadora.
Artistas
e obras selecionados
Agora, quando finalmente se entra no primeiro salão da
documenta, muda tudo; estes números e fatos deixam a se esperar um mega- show,
mas, ao se entrar não há nada. Todo mundo anda por uma sala gigante à procura
da arte, mas esta mostra começa com a arte invisível. Numa pequena sala de lado
há uma instalação de áudio da Ceal Floyer (*1968), do Pakistão - um áudio, uma
musica, repetindo a frase “I´ll just keep on...´Till I get it right” (‘Eu vou
simplesmente continuar... até conseguir’) - ecoando como slogan da documenta. A
artista está pesquisando a dialética entre o literal e o banal - disse o Guidebook.
A mesma artista também abriu a documenta com a “nail-biting performance”; na
qual a artista assume o papel de uma atora nervosa, que está roendo as unhas na
frente do microfone; que se tornou simbólica para a nova sensibilidade e para a
“humanização” desta mostra.
Saindo desta sala
já em estado de alerta, o visitante sente que tem uma coisa neste grande vazio.
É um vento, mesmo com as janelas fechadas. Trata-se, então, de um vento
artificial. A arte é o vento, também invisível. Só é possível sentir esta obra de Ryan Gander (*1976,Great Britan): “I
need some meaning I can memorize – The invisible pull, 2012”(Preciso de algum
significado que eu possa memorizar – O impulso invisível, 2012). Ele sonha
com uma arte invisível que mesmo assim toca e arrebata o visitante. Isso é simbólico
para esta dOCUMENTA(13), que mostra em geral um tipo de arte mais silenciosa, como
que esperando que uma força silenciosa nos transforme.
Há variadas obras invisíveis, como o áudio “para mil
anos” de Janet Cardiff(1957) e George BuresMiller(*1960), no qual mais de 30
autofalantes escondidos no mato do parque emitem o som de cavaleiros, vento e
tempestade, risadas e conversas, depois o som ameaçador de metralhadoras e a
detonação de bombas. Um som intenso que se movimenta pela clareira deixa o
auditório tocado pelo som da guerra. No final, o coral “nunc dimittis” de
ArvoPaert fecha pacificamente o espetáculo.
Havia tantos artistas que aqui é possível mencionar apenas
alguns, numa escolha subjetiva, simplesmente os de que gostei mais ou os que me
tocaram mais.
Mas primeiro, como filtro de pesquisa objetiva, fui
verificar a lista dos artistas representados nesta mostra, por idade, para
visualizar as raízes, as referências da documenta 13. O que chamou a atenção
foi a escolha de artistas não tão conhecidos, mas com obras com os mesmos temas
de seus colegas famosos. Como, por exemplo, a Hannah Ryggen (1894- 1970), da
Noruega, que expôs seus tapetes com imagens críticas ao fascismo, colocando a
vida em risco, nas mesmas mostras como a de Picasso.
Ou as obras de Marc Lombardi (1951-2000), as
”Narrative Structure”, pesquisando com seu trabalhou a rede da corrupção que conecta
a politica e a indústria. Ele morreu no ano 2000, em circunstâncias
misteriosas.
Gostei muito das fotos da Lee Miller
(1907-1977) dentro da banheira do apartamento de Hitler em Munique, que se
encaixam bem num dos temas centrais da documenta: “o trauma e a arte de curar”.
Também as obras de Konrad Zuse (1916-1995), da Alemanha;
que inventou o primeiro computador, mas que também era artista autodidata; com suas
pinturas no estilo influenciado por Feininger. Mostra, com elas, a complexidade
do ser humano e a possibilidade de várias disciplinas reunidas e praticadas por
uma pessoa.
Antoni Cumella(1913-1985), da Espanha, com sua
resistência a um conceito de “uma arte do seu tempo”.
Charlotte Salomon(1917-1943), da Alemanha, com uma obra
muito original, uma mistura de história política e lembranças pessoais, do público
e do privado, com foco nas experiências das mulheres.
Vann Nath (1946-2011), do Camboja, que pintou a história
da sua vida marcada por tortura e destruição nos tempos do Khmer Vermelho.
Emily Carr(1871-1945), do Canadá, como Ícone da arte canadense
apresentou temas sobre a relação dos índios com a modernidade.
Doreen Reid Nakamarra (1950-2009), da Austrália, que era Símbolo
da arte dos Aborígenes da Austrália.
A brasileira Maria Martins (1894-1973), representada com
um conjunto de esculturas, uma referência da Arte no Brasil.
Gustav Metzger (*1926), da Alemanha, que ficou conhecido
com suas obras que se autoconstroem e se autodestroem.
Todos pouco conhecidos internacionalmente, mas de
fundamental importância. Como querendo escrever outra genealogia da arte
contemporânea, uma seleção dos artistas mais sutis, das mulheres, das minorias.
Na parte dos artistas contemporâneos que mais chamaram minha
atenção, quero começar por Pierre Huyghe, da França, com seu trabalho “Untilled”
(“Sem Cultivo”), de 2012, na área da compostagem do parque Karlsaue.
Acima, desenho do artista, apresentado no “Guidebook” da dOCUMENTA(13),
acompanhando a descrição de seu trabalho no parque. O desenho ilustra bem,
quase como um mapa, a obra. É um pedaço da área da compostagem do parque, que
Huyghe transformou. Em seu trabalho há elementos e espaços de diferentes tempos
da historia colocados lado a lado, sem organização ou sinal de origem. Na composição,
as transações e as transformações acontecem sem roteiro. Ele plantou mudas de
diferentes plantas, entre elas umas consideradas ilegais, como a marijuana e o
ópio. No meio disso há uma escultura clássica, um corpo feminino estendido na
lama, a cabeça está escondida por uma colmeia de abelhas. Um cão fluorescente
roda o terreno. Neste teatro na natureza se trata do colapso de uma visão
normal do mundo, de embriaguez, transformação e caos dos sentidos.
E, continuando com
as palavras do próprio artista (6): ...”O homem se movimenta pelo dia como uma
máquina. Revitaliza a morte com uma infinita repetição da vida. 1945. Um cão
fluorescente desmama seus filhotes na sombra de placas de concreto. Um carvalho
de Beuys foi desenraizado. Mirmecocoria acontece, formigas espalham suas
sementes. Os cegos esmagam-nas. Não há cor, nem cheiro. Mesmo quando jogadas no
contexto eterno... onde seu braço a protegia do sol, elas lá se estabeleciam. É
infindável, incessante.”
(6): Guidebook, catalog da dokumenta13,
Hatje Cantz editora, Alemanha 2012
(7): Vitoria Daniela Bousso (7), crítica de Artes
Visuais e curadora, em parte de um texto publicado em 20.08.2012 no
www.diarioliberdade.org
:
Outro trabalho muito atual é o de Claire
Pentecoust, exposto no Ottoneum, o museu das ciências da natureza, que abriga
para a dOCUMENTA(13) obras e projetos sobre a questão das sementes e da
produção de solo, vida, alimentos, arte, histórias, interação e “estar no
mundo”.
Claire Pentecost (*1956 em Atlanta,
USA) usa várias estratégias: cooperação, pesquisa, ensino, estudo de campo,
escritas, palestras, desenhos, instalações e fotografia para a pesquisa
corrente das estruturas institucionais que controlam e organizam os
conhecimentos. Ela é ativista contra a indústria multinacional das sementes
geneticamente manipuladas e procura estruturas alternativas. Para a dOCUMENTA(13) ela desenvolveu um conjunto de trabalhos sob o titulo: “
when you step inside, you see that it is filled with seeds” (ao entrar, você
nota que o espaço está cheio de sementes).
O trabalho principal, “soil-erg”, de
2012, tem como ponto de partida as sementes. Pentecost entende a semente como o
“mais antigo esquema de saberes de fonte aberta
da historia”.
Ela apresenta um novo esquema de
valores, com base no solo fértil. O “SOIL-ERG”, um valor que cada um pode
produzir através da compostagem. Na exposição, ela apresenta o produto final da
compostagem prensada em forma de barras de ouro, o símbolo do valor da
sociedade atual (foto acima). Mas estas barras estão frágeis, se recusam a ser
transportadas pelo mundo; como o solo, que é por principio conectado com o
lugar; e que desenvolvem seu maior potencial quando estão sendo tratadas dentro
do seu contexto específico.
Na cédula do “SOIL-ERG” elaborado por
ela, estão representados seres que participam necessariamente da manutenção da
vida.
No jardim na frente do Ottoneum ela coloca
as ideias em prática com uma versão de jardins verticais para lugares com falta
de espaço e apresenta, em colaboração com a Universidade de Kassel, um esquema
de compostagem com minhocas.
Embaixo um foto da horta vertical
proposta por ela.
Uma instalação que me impressionou
muito no local foi “In Search of Vanished Blood” (Procurando Sangue Desaparecido),
de 2012, de Nalini Malani (*1946, Paquistão), da Índia.
O trabalho consiste num vídeo de 6
canais, teatro de sombra e 4 refletores, todos atuando juntamente com cinco
cilindros gigantes pintados, pendurados no teto, e que giram a um som alto e
bizarro.
Entrando na sala grande, as projeções
tomam conta das pessoas. Elas viram parte da superfície de reflexão de uma
colagem dramática. Múltiplas associações estão possíveis neste mundo flutuante
de encontro e separação de imagens e palavras, o observador se sente quase no
meio de um cérebro que está sonhando.
Nada é explícito, mas muito é tocado. A
artista trabalha principalmente com temas femininos, como a situação da mulher
na sociedade da Índia.
Nalini Malani excede as fronteiras da
pintura. Ela usa suportes transparentes. Com a utilização da técnica de pintura
em vidro, o trabalho é reverso. O ultimo detalhe da figura, os olhos, o lápis, são os primeiros a ser pintados. Com
uma imensa riqueza de detalhes, o processo de trabalho dela torna quase
impossível conseguir uma impressão geral da sua pintura, pois ela nos puxa para
dentro do mundo dela, nos animando a mergulhar ainda mais profundo nestes
espaços e descobrir mais camadas mais atrás de todas estas imagens. Neste mundo
líquido nada se mantém fixo, tudo está em extensão, num estado de contínua metamorfose
e transformação.
Outro trabalho dando voz aos temas
femininos e à mística é o trabalho da Chiara Fumai (*1978)da Itália.
No parque da Karlaue ela montou a “casa
de exposição moralista”, um cenário para performances. A casa parece como a
resposta feminista à casa da bruxa dos irmãos Grimm, que viveram em Kassel. Neste
cenário ela conecta livros filosóficos de Hegel com a história do
espiritualismo e ocultismo com as propostas do grupo radical-feminista Rivolta Femminile,
da Roma dos anos ´70. Na performance “Shut up. Actually, Talk”, de 2012, ela
assume a personagem da Zulumma Agra, uma
sensação anormal dos espetáculos do século
19. Hoje “liberada” e de obsessão demoníaca, fala através da artista e a
personagem da Anie Jones, a mulher com barba do século 19, que também usa a
Artista como “médium”. Na sua época, as duas mulheres foram expostas como
objetos em museus. Para a artista, uma bruxa e uma feminista têm muitas coisas em
comum. A Artista cria sempre novos cenários. Ela entra em outras personagens e
gera novos mitos para tirar a mascara dos velhos mitos. Ela disse que se
interessa muito mais pela ficção do que pelo documentário. Com seu talento para
a encenação, as performances em sua “casa da bruxa“ são muito intensas. Os
visitantes podem entrar para a Seance
só um por um. Eles precisam de coragem. Trata-se de um encontro muito pessoal.
Num canto completamente diferente, e
também no sentido de sua localização aqui na dOCUMENTA(13), está situado o trabalho de Rabih Mroué (* 1967), de Beirute.
O trabalho dele para a documenta, a “Pixelated Revolution”, de 2012, é uma espetacular
forma de documentação sobre o “morrer” no interior da revolução que ocorre na Síria:
A vítima, ela mesma, é a pessoa que filma com seu próprio celular os tiros que a
atingem.
O governo da Síria não quer que imagens e informações saiam do país. “Quem filma na Síria, está sob perigo de morte” disse o artista libanês Rabih Mroué (8) Para ele, a reencenação é um meio para gerar uma distância, porque os vídeos testemunham grande violência, mesmo não mostrando sangue e mortos. Se sabe que está se tratando de “double-shooting”: o contato de olho entre a pessoa com a câmera e o atirador, e depois se escuta um tiro, que atingiu o celular. Não sabemos se a pessoa que filmou foi ferida, morta ou salva. O fato de o celular ter caído no chão já é expressão de grande violência.
Está havendo também guerra contra imagens. O regime da Síria quer evitar a todo custo que circule informação de fontes que não estão sendo controladas por ele. Por isso tem se
Está havendo também guerra contra imagens. O regime da Síria quer evitar a todo custo que circule informação de fontes que não estão sendo controladas por ele. Por isso tem se
atirado contra jornalistas profissionais que estão documentando os acontecimentos. Além disso, jornalistas têm sido perseguidos e expulsos. Este regime está com medo demais das medias e das imagens.”
(8) Mroué em uma entrevista com Sigrid
Brinkmann para a Radio Alemã “Kultur!” em agosto de 2012
.
.
Os vídeos reinterpretados, como também o
material original, que mostro nas minhas performances e na minha exposição na
documenta13, deixa impossível se identificar com um dos lados: nem com o
atirador nem com a vítima. É muito interessante analisar os vídeos e desfazê-los
em partes. Eu uso o material das imagens para descobrir algo sobre a relação
entre imagem, cópia e morte. É impressionante observar que o regime da síria
manda atirar contra cada câmera e cada celular com o qual se está fotografando
, filmando ou gravando som. Ele quer remover imagens e deixá-las desaparecer.
Vimos vídeos nos quais se vê pessoas circulando normalmente. De repente, alguém
do pessoal da segurança avista alguém na multidão, que está filmando com o
celular, e imediatamente aponta sua arma na direção de tal pessoa que está
filmando e atira. Talvez ele a tenha matado.
A percepção é que o celular se
transforma numa parte, num prolongamento do corpo, como que no lugar do olho, à
frente da gente, como uma arma. O artista, em seu trabalho “Pixelated
Revolution”, pesquisa este tipo de encontro, onde o rosto ampliado do assassino
torna-se irreconhecível pela insuficiência de pixels. Ele analisa e transforma
os filmes de celular de manifestantes da Síria. Num filme ele pergunta –
“porque o olho e a câmera vêm o que o intelecto não consegue entender, a
chegada imediata da própria morte?”. Ampliadas, as imagens do celular ficam
desfocadas, como uma pintura abstrata.
Na instalação há também uma mesa com um
cinema de dedo para folhear, mas, ao fazer isso, o dedo do observador fica
manchado de azul; será que sai a tinta? Você também foi atingido, você é testemunho,
incapaz, mas envolvido. Saí bem mexida desta sala...
São tantos os artistas que eu gostaria
de mencionar e pesquisar mais profundamente, só que isso excederia o espaço
deste ensaio. Espero, todavia, ter despertado a curiosidade do leitor e
conseguido passar uma imagem boa dos artistas representados.
O
Programa Complementar
No Programa Complementar intitulado “Talvez Mediação”,
este „talvez“ quer expressar uma
certa flexibilidade sobre as diversas formas como o conhecimento pode se
manifestar: em matéria, em palavras, em experiência e na vida. „Talvez“ como
resistência a uma ideologia que procura uma produção eficaz de certezas e
administração de conhecimento, querendo aumentar a tensão que mantém o estado
de imaginação, que faz habitável o mundo das possibilidades, tenções que surgem
das forças opostas da afirmação radical e do não saber. “Talvez” para mostrar
uma postura de ceticismo, uma forma de questionamento, que não julga por enquanto,
para abrir desta forma caminhos nos quais experiências inesperadas podem
desdobrar significados.
Dentro deste programa se incluem:
- “dTOURS“ – tours guiados por guias treinados
- “Studiod13“ – oficinas para crianças poderem explorar
materiais de forma lúdica
- “Palestras, Debates e Congressos”
- “Eventos Especiais e Atividades“
- Projetos de arte que convidam o espectador à
participação
- Filmes
Minhas
Avaliações
É preciso disposição para ver e encontrar a arte. É
necessário preparo físico e tempo para realmente perceber e aproveitar a
exposição que se desdobra em camadas. É difícil compreendê-la em toda sua
complexidade. Ter tempo para reflexão, com o ajuntamento de todas as partes do
todo, é necessário.
Até hoje ainda se abrem para mim novos aspectos, me
relembrando e me levando a perceber as obras visitadas no contexto
contemporâneo.
Estão sendo desmontados alguns jargões que se
constituíram em estatuto da arte nos últimos tempos, como a noção da qualidade,
o projeto apriorístico, o embate entre formalismo e não formalismo, harmonia e
diálogo entre obras, suportes e a reduzida utilização da alta tecnologia.
A dOCUMENTA(13) apresentava “colapso e recuperação” como
tema central, um tema muito atual, que fala não só do colapso do mercado
financeiro, mas também do colapso dos ecossistemas, da sociedade. Como a curadora
mesma disse, não dá mais, hoje em dia, para fazer arte pela arte. A arte tem
uma missão. E esta missão é possível ser sentida aqui na dOCUMENTA(13). Aqui a
arte quer tocar as pessoas, mexer com elas e iniciar um processo de
transformação. Bem no sentido da arte contemporânea, da arte relacional. Ela
quer tocar todas as pessoas. Acho que até por isso traz consigo um espectro tão
grande de artistas e formas de arte: uma linguagem para todas as línguas. Mas
todas falam a mesma coisa: não podemos continuar como até agora; o ser humano
tem que se sensibilizar para a terra, os outros seres, a natureza, os outros
seres humanos e para si mesmo, se quer sobreviver. É hora de se questionar
todos os caminhos andados até agora e, talvez com a mediação da arte, juntar
todas as disciplinas, ouvir todas as vozes, para encontrar uma nova direção.
Muitas obras chamam a atenção para a necessidade de se
ter mais sensibilidade. A arte anda no limite do real. Assim, mais alerta, o visitante
começa a ver o mundo normal em volta de si também com outros olhos e, talvez,
comece a ver os absurdos do mundo real. Desta forma estaria sendo cumprida boa
parte da missão da dOCUMENTA(13).
É exatamente neste sentido o alvo da maior parte das críticas
à dOCUMENTA(13). “Querendo agradar todo mundo”, “pegar a onda do momento”, “não ser consequente”, “silenciosa demais”, “perdido no mato” e outras
afirmações parecidas estão entre as críticas... Pessoalmente, acho que numa mostra
deste tamanho sempre tem coisas que agradam e desagradam. Tudo depende de para
onde você olha. Como na vida real, pode-se ver a vida como uma guerra ou como
uma celebração.
Para mim esta mostra foi um grande sucesso, porque me
tocou, mexeu, provocou e está até hoje me seduzindo a aprofundar minha pesquisa
nos temas e obras colocadas por ela. É realmente
como um grande e complexo dispositivo de arte, com ideias e mensagens bem
claras.
Ninguém está sendo chacoalhado ou perturbado. Não há
escândalo nem provocação gritante. Esta mostra não quer vender nada, não há
novidades do mundo inteiro, nem mensagens messiânicas baratas. Ela procura uma
forma mais sensível de falar. Ela só quer uma coisa: mudar nosso pensamento.
Bibliografia
- The Guidebook, catalogo 3/3 da dOCUMENTA(13). Editora
HatjeCantz, Alemanha
- art- especial documenta 13, Gruner + Jahr AG&Co KG,
Hamburg, Alemanha, 6/2012
- Le
Monde Diplomatique -
Vitoria Daniela Bousso sobre a documenta13
-
Entrevista de Sigrid Brinkmann com Rabih Mroué, para o Deutschlandradio Kultur!
Agosto2012
- HannoRauterberg, “Lost in Kassel” DIE ZEIT, 6.6.2012 Nr.
24
- http://www.goethe.de/ins/pl/lp/kul/dup/bku/doc/deindex.htm Sylwia Kawalerowicz
- Goethe, Brasilien, Agosto2012, artigo: ”Annäherungen
und Unterschiede: brasilianische Künstlerinnen auf der Documenta 13, de Fernando Oliva, curador e professor da Faap e da faculdade Santa
Marcelina em São Paulo. Membro curador do festival Vídeo Brasil, entre outros.
- Art Kunstmagazin, Novembro 2012, “Perfecte wellness-kur
für Kunstneurotiker” Bilanz von Christian Saehrendt
- http://www3.documenta.de/de/ site oficial da
documenta13
- http://www.faz.net/aktuell/feuilleton/kunst/documenta-13/videorundgang-documenta-13-vom-gehirn-in-die-auen-11778766.html
-
http://www.sueddeutsche.de/kultur/ende-der-documenta-und-dazu-urmusik-aus-der-geierhoehle-1.1461055, Artigo de Gottfried Knapp, 07.09.2012
-
ttt-extra, do canal de televisão Alemã ARD do dia 10 de junho de 2012